sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Texto de viagens - Da Sibéria (1)

Não consigo atravessar a Sibéria sem ouvir gemidos de gente madura.
Mal o comboio avança sobre os carris, ainda a alma exercita o seu conforto, e já a memória dispara letras acorrentadas a tinta vermelha de jornais antigos.
Lembro-me do que diziam as letras: que daqui da Sibéria haveria de nascer o homem novo. Estava a nascer…Mas o fabrico era de tal maneira sofisticado, o segredo tão precioso, que o homem novo ainda não passava de um protótipo.
Dizia-se: só quando todas as sociedades importassem em massa o homem novo é que a Sibéria poderia tornar-se um lugar sinalizado pela história dos homens felizes, mas sem memória.
Claro que tudo se podia dizer sobre a Sibéria. Para a imensa maioria dos homens, a Sibéria era e seria sempre, o lugar onde a mentira viveria perpétua e sem culpa.
Jamais alguém ouviria os gritos que ecoavam de tão longe. Pensava-se. Onde não vive a esperança fica a ideia da perpétua tirania.
Aqui na Sibéria, porém, a cadeia dos homens era tão propositadamente complexa, tão requintadamente elaborada, tão preciosamente educada, que de homem nenhum, dos pouquíssimos que conheciam ou alguma vez conheceriam a Sibéria, sairia uma palavra que fosse a favor da dor, dos gritos ou dos gemidos do Homem. Do homem velho, claro. Do homem novo, dizia-se, viveria sem dor, sem tormentos, sem receios, nem ressentimentos.
Atravesso, porém, a Sibéria, vinte anos depois de o mundo ter rejeitado, completamente, a importação dos homens novos aqui desenhados, inventados, produzidos.
Os comboios que se cruzam comigo já não trazem homens velhos para serem devolvidos nem homens novos para ser exportados.
Aqui na Sibéria, onde as almas dos homens, se habituaram por força das circunstâncias, a calar o som produzido pelo movimento, passam comboios carregados de matéria, de poeira distribuída pelo vento, de matérias que um dia, dilaceradas pelo tempo, devolverão ao homem, de novo, o sentido trágico da vida.


©Ana Paula Lemos



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